SOB A CASA ESTRELADA, UM LADRÃO DE SORRISO

CASA: sf. 1. Construção destinada a moradia;

2. Domicílio de um grupo de pessoas que vivem sob o mesmo teto;

3. Reunião de bens de uma família.

(Dicionário Michaelis) 

Era uma casa sem graça e escura. Feita de piche, tinta e cerâmicas sobrepostas, ela é igualzinha a outras centenas de milhares de casas que se espalham pelo mundo, como uma complexa e intrincada rede de miséria. Essa casa, em específico, existe no coração da Rainha da Borborema. Uma veia inquieta que pulsa em silêncio pelas noites e se esconde na correria barulhenta dos dias. Ao fim, ela existe e não existe. Para as mulheres, homens e crianças que nela moram, ela existe. Para os outros… é invisível.

Sem convite, entramos na casa. Estamos na casa. Vivemos a casa.

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CENTRO, 505: ONDE MORA A DOR DAS RUAS?

Arquitetos da vida e da sobrevivência, eles improvisam castelos com caixas de papelão e cobertores velhos. Quando se trata de enganar o frio, qualquer coisa serve de teto e paredes — do céu estrelado às cortinas tecidas de metáforas. Acolchoados sobre o chão duro, repousam suas chagas, seus gemidos e milagres. Entre pretensa vulnerabilidade e misteriosa força, os moradores em situação de rua seguem colonizando os coretos das praças e vãos dos viadutos, seguem reivindicando as marquises das lojas e calçadas da cidade.

Não importa se pelas baixas temperaturas ou se pela alta da violência urbana, mais do que a física, a morte que tanto temem é a social: aquela que os torna invisíveis perante a sociedade e o poder público. Nessa sentença, você e eu somos também culpados, uma vez que, na maioria das vezes, só lhes oferecemos nossa atenção quando eles estão atrapalhando o tráfego ou mesmo reclamando de sua fome e de seu frio. O carioca David da Silva, de 28 anos, já sentiu na pele essa triste realidade.

DO RIO ÀS RUAS 

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DESTINOS INVISÍVEIS

A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. 

Carolina Maria de Jesus

“A previsão de chegada do seu transporte é de sete minutos”, informa a mensagem que surge no aplicativo. Espero impaciente. “Viagem cancelada, estamos procurando um novo motorista pra você”. Me irrito. Quinze minutos depois, finalmente o carro chega. O motorista, distraído com o céu enfeitado de pipas coloridas, nem percebe a minha presença. Não destrava as portas de prontidão. Preciso bater no vidro para despertá-lo do transe. Seguimos viagem. O tempo muda em questão de segundos. O sol dá lugar rapidamente à chuva, que começa a cair torrencialmente. Campina Grande sendo Campina Grande! –  Praguejo sobre as dificuldades do meu dia e lanço meia dúzia de palavrões entredentes. Reclamo da minha realidade como se não houvesse outra pior.

Bem distante da Rainha da Borborema, no município de Jerônimo Monteiro, interior do estado do Espírito Santo, uma família, após longos anos, voltou a encontrar o real sentido da felicidade. Dona Léia, com quase oito décadas já vividas, e seu neto Jorginho, na época com apenas nove anos, fizeram de um local de passagem, um abrigo para os dias incertos. Foi no Terminal Rodoviário Argemiro de Figueiredo, a Rodoviária Nova de Campina Grande, que avó e neto se abrigaram por um tempo. Quis o acaso que aquele local, responsável por ligar pessoas a diversos destinos do estado e do país, fosse morada temporária para os dois. Na mala, angústias, dores e incertezas.

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ENTRE PECADOS E BÊNÇÃOS… QUEM DÁ MAIS?

A promiscuidade da vida enoja.

Passos apressados cruzam a rua. A vida mostra-se, a cada dia que passa, mais ordinária para quase todos.

A frota de ônibus segue um fluxo intenso. Comerciantes carregados com imensas sacolas, estudantes com seus cadernos debaixo do braço, sonhos e frustrações estampam os rostos dos transeuntes que se deslocam  rumo aos mais diferentes destinos.

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NAS ESQUINAS DO SEXO: VENDE-SE UMA TRAVESTI

Quantos olhares passeiam no meu corpo exposto?
Quantos querem saber meu gosto?
(Faca Amolada – Val Donato)

No centro comercial de Campina Grande, barracas são desmontadas. Portões de ferro baixados. Pesados cadeados e grades colocados nas fachadas. Alarmes ligados. Medidas de segurança necessárias para tentar burlar a cobiça dos assaltantes. Carrinhos de vendedores autônomos são levados com suas portinholas já fechadas. O cheiro do óleo queimado dos salgados vendidos a um real é o que fica para trás, impregnado nas paredes descascadas e cheias de cartazes colados e recolados um sobre o outro. Anúncios de shows e peças de teatro já há muito esquecidas. Os postes com luzes automáticas vão fazendo o trabalho de iluminar o caminho à frente, enquanto os tons de cinza escuro pintam o céu e as sombras se alongam pela calçada. Os ponteiros do relógio parecem mentir as horas, emperrados antes das seis da noite. E, mesmo assim, a luz do dia já se foi. Os dias mais curtos anunciam a chegada do inverno. E de uma, já tão conhecida, promessa para o comércio: o São João, que, em terras campinenses, tem a fama de ser o maior do mundo. Não faltam bandeirinhas, balões, chapéus de palha e tecidos quadriculados para enfeitar as lojas. Nada de perder tempo. É a grande oportunidade do ano para alavancar a economia um tanto parada.

Mas isso será amanhã.

Hoje, as ruas apinhadas de pessoas com sacolas de compra nas mãos estão sendo substituídas pelos sons das buzinas. Ônibus, carros e motos se confundem em meio ao trânsito caótico. Mulheres e homens, com expressões cansadas, desabafam sobre o dia puxado. E, mais uma vez, alguém passou uma dor de cabeça dos diabos com um cliente pé no saco. E, mais uma vez, os garotos de rua entraram na loja para pedir alguns trocados. E, mais uma vez… um dia como qualquer outro.

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OS FILHOS DA LUTA

Durante o dia, ela reserva os gritos aos filhos, que aprontam estripulias e reinações no carrossel da infância; à noite, tenta abafar os gemidos, cujos ecos arranham os azulejos de quartos alheios. Durante o dia, ela arruma as fronhas e lençóis, deixando à mostra sua alma cheia de ternura; à noite, despe a pele que lhe cobre e veste sua melhor versão para, então, bagunçar outras camas. Durante o dia, o mundo se abre através de uma janela e da lâmpada incandescente que pende do teto; à noite, ela se perde em luzes de neon, sufocada por uma aura mística e enigmática.

Durante o dia, ela é o colo mais seguro que existe, é o ombro exausto de sustentar as próprias escolhas, é o alimento que sacia os seus; à noite, ela é um par de seios definidos e de coxas apertadas, ela é a boca cor de carmim e também as mãos a explorar territórios desconhecidos. Durante o dia, ela usurpou a desconfiança para construir a sua sobrevivência e de sua família; à noite, prefere não distinguir os vultos que lhe assombram, porque eles chegam, entram, saem e vão embora com a solenidade da indiferença. 

Durante o dia, ela valsa bailes em passos curtos, numa contradança tímida e desajeitada; à noite, o menor de seus movimentos é medido por permissões e concessões. Durante o dia, o trabalho é remunerado com sorrisos banguelas, abraços afetuosos e, sobretudo, com um amor gratuito e imensurável; à noite, o salário é pago em notas de papel e regalias embaladas por malícias. Ela é Jullyana Maga (nome de guerra), de 33 anos; à noite, a mulher exerce o ofício de profissional do sexo, já durante o dia, ela trabalha na profissão mais antiga da humanidade: a de mãe.

O nascimento de Jullyana

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